Portfolio
João Penalva: A efémera linguagem da rua
Afonso Dias Ramos

Neste portfólio de João Penalva, um artista amplamente reconhecido pelos seus trabalhos de cruzamento do vídeo, da instalação, da fotografia, da música, da performance, do texto e da imagem, apresenta-se uma série inédita de fotografias a preto e branco, que foram feitas nos caminhos percorridos pelo seu autor em Londres, e que se assemelham visualmente às pinturas do expressionismo abstracto norte-americano, como comenta o historiador da arte Afonso Dias Ramos no breve ensaio que o acompanha.

penalva

João Penalva, W1H 4LL, 2015

 

Continuar. Até que a cena se torne improvável. Até ter a impressão, por um momento fugaz, de estar numa cidade estranha ou, melhor ainda, até já não conseguir entender o que está a acontecer ou não, até que todo o local se torne esquisito, e deixar de saber se é a isto que uma pessoa chama uma cidade, uma rua, edifícios, passeios…

Georges Perec1

As fotografias inéditas deste «Portfolio» foram capturadas em 2015 na cidade de Londres, onde João Penalva se fixou em 1976, quando entrou na Chelsea School of Art, depois de dar por terminado um percurso artístico internacional na área da dança com coreógrafos como Gerhard Bohner, Pina Bausch ou Jean Pomares. Estabeleceu-se, entretanto, como um dos artistas visuais contemporâneos mais reconhecidos, com um trabalho que se notabilizou, entre outros motivos, pela impossibilidade de ser abarcado em fórmulas simples, conjugando instalação, imagem, texto, voz, performance, dança e filme. Explorando as diversas possibilidades narrativas destes suportes através de uma indistinção entre facto e ficção, trabalha sistematicamente o papel do acaso e o lugar do espectador, o mecanismo da percepção e a instabilidade interpretativa, construindo assim um palimpsesto de memórias, eventos e histórias. A série que se reproduz nestas páginas apresenta uma rede intricada de arabescos, um emaranhamento de riscos e de cortes, com traços geométricos ou marcações acidentais, em tons monocromáticos que sugerem imediatamente pinturas abstractas. No entanto, trata-se aqui de uma série de fotografias digitais a preto e branco que João Penalva foi tirando nas suas caminhadas entre a casa e o estúdio, na zona sudeste de Londres, percorrendo diariamente, como milhares de outras pessoas, as ruas movimentadas que ligam Marble Arch a Bermondsey.

A acumulação de raspões e remendos, de borrões e nódoas, vestígios e marcas na superfície da cidade revela uma infinita diversidade morfológica, oferecendo-se ao artista como autênticas composições ready-made. «Diria que fui encontrando pinturas pelo chão das ruas», relatou João Penalva2. O encontro fortuito com tais marcações remete para as telas de expressionistas abstractos norte-americanos como Jasper Johns ou Robert Rauschenberg, que Penalva havia elegido como referências principais quando se estreou como pintor — associando ambos os nomes, e não por acaso, às coreografias de Merce Cunningham, ao perfilhar essa ideia comum do processo artístico como liberdade criativa e presença no mundo. Este episódio de reconhecimento espontâneo da arte nos passeios de Londres lembra a epifania de John Cage em Nova Iorque, em 1944, enquanto esperava pelo autocarro depois de visitar uma exposição, na qual Mark Tobey apresentou as suas pinturas abstractas inspiradas na caligrafia asiática: «Por acaso, olhei para o passeio, e dei conta de que a experiência de olhar para o passeio era a mesma experiência de olhar para um Tobey. Exactamente a mesma. O deleite estético era igualmente elevado.»3 Cage regressou sempre a essa súbita iluminação que elidia a distinção entre arte e vida, glosando-a mais tarde de forma poética: «Ao esperarmos pelo autocarro, assistimos a um concerto. Subitamente estamos em cima de uma obra de arte, o passeio.»4 Igualmente informadas pela atenção aos objectos do quotidiano, nas fotografias de Penalva esta relação íntima com a pintura prende-se não apenas com a verticalização da imagem no espaço, mas parecem também invocar a aparência das reproduções das telas do expressionismo abstracto nos catálogos em que inicialmente circularam pelo mundo. Noutra série, Penalva imprimiu fotografias similares a estas em telas de linho preparadas para pintura a óleo, à escala real, usando o suporte privilegiado da abstracção e emulando essa linguagem através das rachas geométricas, das manchas caligráficas ou das marcas sarapintadas de pastilhas elásticas (também um motivo na obra de Gilbert & George). A confusão dos suportes institui aqui um estado transitivo entre pintura e fotografia, conciliando, por um lado, um enquadramento muito rigoroso do ponto de vista formal, mas por outro a contingência própria da imagem, que se faz, tal como os passeios, de erros e acidentes.

Este olhar para o chão poderia contrapor-se, na obra de João Penalva, ao olhar para o céu de um trabalho anterior realizado no Japão, Looking up in Osaka (2006), no qual, deambulando pela cidade, começou a apontar a câmara fotográfica para cima. O rectângulo resultante fixa um novelo denso de fios eléctricos, postes de amarração, cabos de alta tensão ou candeeiros públicos, os quais, recortados contra o céu, e sem marcadores geográficos identificáveis, desenham massas, volumes ou linhas, como silhuetas coloridas que se aproximam mais do abstraccionismo geométrico. No caso das imagens na capital britânica, o olhar para baixo acentuou, pelo contrário, não só um tipo de atenção microscópica ao passeio, mas a qualidade de uma superfície de inscrição expressionista que é constantemente refeita pelo movimento dos corpos e das coisas, em estado de fluxo. Apesar de as imagens estarem todas minuciosamente georreferenciadas no título, situando o código postal do prédio adjacente, o espaço nunca é uma área abstracta, mas um lugar habitado feito dos sedimentos da passagem. Originalmente concebido como estrutura urbana uniforme e discreta, o pavimento aparece antes como um mosaico único e imprevisível de detritos, fracturas, brechas, salpicos e relevos, isto é, como resultado mutante de uma prática da vida quotidiana.

Em certo sentido, trata-se de um procedimento de abordar a cidade, um modo de relacionamento com o lugar, comum às práticas experimentais da fotografia na arte contemporânea — desde as paisagens escarificadas de Sophie Ristelhueber que focam traumatismos infligidos pela história ao levantamento de marcas forenses em cenários desérticos com Rut Blees Luxemburg, ao registo peripatético da arte de caminhar com Francis Alÿs ou ao mapeamento errático de espaços urbanos com Gordon Matta-Clark. Em Penalva, o ancoramento na tradição pictórica não remete para o lugar fundacional do passeio na pintura renascentista, fixando a ilusão de profundidade ou modulando a perspectiva, mas imita as idiossincrasias de composição e estilo da abstracção, imprimindo antes a assimetria e desordem. Os passeios assumem-se assim como palco de encontro e de descoberta do corpo — os mesmos caminhos percorridos mais tarde pelo artista já não preservavam nenhum dos restos e dos rastos visíveis nestas imagens, reforçando a ideia de um ecrã no qual, segundo João Penalva, «tudo, todos lá deixam a sua marca». Como espaço de inscrição do corpo e da matéria, esta metamorfose do espaço urbano assemelha-se ao texto literário na medida em que, como afirmou Manuel Gusmão, nos expõe a essa evidência de sermos «corpos históricos singulares, percorridos por uma escrita emaranhada, uma voz escrita, inscrita e excrita — tatuagem e palimpsesto»5. É conhecida a analogia de Michel de Certeau entre a linguagem e a cidade — «O acto de caminhar é para o sistema urbano o que o acto de discursar é para a linguagem».6 Mas o trabalho de João Penalva releva outra dimensão adicional desta psicogeografia, a que Rebecca Solnit aludiu ainda recentemente: «A metáfora de Certeau sugere-nos uma possibilidade assustadora: se a cidade é uma língua falada por caminhantes, então a cidade pós-pedestre não só será muda, como arrisca tornar-se uma língua morta.»7 A ideia da tatuagem e do palimpsesto — contrastante, por isso, com o grito revolucionário dos estudantes no Maio de 68, «sob o passeio, a praia!» — remete-nos assim para uma redescoberta do quotidiano na sua unidade mais banal, nessa dimensão a que Georges Perec denominou de «infra-ordinária»8, a perscrutação atenta da superfície acumulada e descurada do asfalto da cidade que, ao interromper esse sentido familiar dos espaços quotidianos, nos teletransporta para outra posição de onde pode sair algo extraordinário. As imagens pertencem, assim, a um momento experimental entre as humanidades e as artes na interpelação dos espaços, enquanto descrição intensiva que prescinde da explicação, cultivando uma intimidade com o que passa despercebido, de incentivo ao abrandamento e à paragem, contrariando o ritmo acelerado dos dias. Em larga medida, estas abordagens contrariam os modos dominantes de invocar um lugar na primeira metade do século passado, entre a geografia regional e a história local, na tentação compulsiva de traçar linhas de contacto entre o território e a identidade9. No rescaldo da fenomenologia, que demonstrou que a experiência humana excede sempre a própria atenção, indo ao encontro da suposta indiferença das coisas, insinuou-se um tipo de pensamento topológico na filosofia — Walter Benjamin, por exemplo, foi um dos primeiros a começar pelo onde, e não pelo habitual quê, como ou porquê10 — e consolidou-se uma tradição crítica da cidade como coreografia, na senda de Michel de Certeau, Jane Jacobs ou Henri Lefebvre. Nesta série de imagens de João Penalva, as fendas e gretas no asfalto e no cimento, as manchas e as raspagens, placas tectónicas em permanente mutação, inscrevem-se nesta importante linhagem teórica e estética. Com inexcedível brio e elegância formal, resgatam a superfície prosaica da cidade de todos os dias para um olhar demorado e com um apelo à imaginação, transfi- gurando as coisas comuns de modo singularmente evocativo e imponderável. Como escreveu W. H. Auden, «a fissura na chávena de chá / Abre uma faixa até à terra dos mortos»11.

1. Georges Perec, Espèces d’espaces, Paris: Galilée, 1974.
2. Comunicação privada com o artista. Agradeço a João Penalva as conversas e a gentil disponibilidade.
3. «John Cage: Conversation with Joan Retallack», Aerial 6/7, 1991, pp. 107–108.
4. John Cage, X: Writings ‘79–’82, Middletown: Wesleyan University Press, 1983, p. 140.
5. Manuel Gusmão, Tatuagem e Palimpsesto, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 10. (Itálicos no original.)
6. Michel de Certeau, The Practice of Everyday Life, Berkeley: University of California Press, 1984, p. 13.
7. Rebecca Solnit, Wanderlust: A History of Walking, Nova Iorque: Penguin, 2001, p. 213. Agradeço estas duas últimas referências a Martim Ramos.
8. Georges Perec, L’infra-ordinaire, Paris: Le Seuil, 1989.
9. Tim Cresswell, Maxwell Street: Writing and Thinking Place, Chicago: Chicago University Press, 2019.
10. David Kishik, The Manhattan Project: A Theory of a City, Stanford: Stanford University Press, 2017.
11. W. H. Auden, «As I Walked Out One Evening», Another Time, Nova Iorque: Random House, 1940, p. 43.